“Segundo os nagôs iorubás, num tempo incalculável, os Conselheiros de Òrúnmìlà, que aqui se instalaram conforme determinação do Criador, foram encarregados de executar dezesseis tarefas[1]. Disse-lhes Olódùmarè: ‘Existe aprisionada dentro de uma grande masmorra uma jovem virginal, que recebeu de mim o nome de Àiyapa [2]. Desejo veementemente que vocês a encontrem antes que a mesma seja destruída. Por um longo tempo, ela estará invisível e protegida, entretanto, a sua libertação e propagação são necessárias ao sentimento vital dos seres humanos. Sem ela, com certeza todos sucumbirão.’ Continuando seu diálogo, Olódùmarè esclareceu aos Conselheiros que eles durante a jornada não deveriam, em hipótese alguma, abandonar (Patì), dar falso testemunho (ìbúra), ter aversão (àifé), aviltar (sàbukusí), causar desavenças (múyàto), causar danos (dowódelè), desencaminhar (sìlónà), esquivar-se (fajúro), fazer falcatruas (aiyejije), ignorar (fojúfòdá), molestar (yolénu), negar (fidù), odiar (sàifé), pecar (sè), repudiar (tìkúrò) ou trapacear (kónífà). Não poderiam fazer nada disso com qualquer pessoa que encontrassem.
Após ouvirem atentamente as determinações do Criador, os dezesseis aconselhadores saíram em busca de ‘Àiyapa’. Após quatro dias de jornada, os conselheiros se defrontaram com um ser atrofiado, maltrapilho e portador de diversas escaras[3] sentado no centro de uma encruza de quatro saídas. Essas encruzilhadas se desdobravam cada uma delas em quatro aberturas. Assim que o mendigo os avistou, estendeu-lhes as mãos suplicando: ‘Dêem-me algo para matar minha fome. O pouco que cada um de vocês me ofertar não lhes fará falta.’
Òfún (também chamado de Òrãngún), o mais velho de todos os conselheiros, providenciou imediatamente a partilha dos alimentos, entregando-os, logo em seguida, àquele ser de aparência desprezível. Tão logo os mantimentos lhe foram entregues, o mendigo perguntou: ‘Qual de vocês é o líder?’ Òrãngún respondeu-lhe: ‘Somos todos irmãos, nosso líder chama-se Òrúnmìlà.’ ‘Sendo assim, apresento-me a todos; sou Ijèlú – A Cabeça do Mundo. Em retribuição aos alimentos que me foram ofertados, dou a cada um de vocês um Irofa [4], bastão este que, por três vezes consecutivas, vocês tocarão o solo de cada encruza que passarem’. Continuando com as explanações, Légbá Ijèlú disse-lhes: ‘No momento em que cada um de vocês tocar o chão da encruza, dela sairá uma voz perguntando-lhes sobre quem ousa bater no solo com um bastão feito com chifres de cervo. Um a um, após ouvir a indagação, deverá responder que é um servo de Òrúnmìlà. A voz então, lhes perguntará sobre o que procuram. Em resposta vocês dirão que Olódùmarè, o Criador Excelso, encarregou-os da procura por Àiyapa, antes que ela seja aniquilada’.
Assim que acabou de se pronunciar, Légbá Ìjèlú desapareceu da mesma forma que surgiu, deixando os conselheiros perplexos e impossibilitados de formularem outra pergunta.
Refeitos do ocorrido, os conselheiros trataram de seguir viagem em busca da jovem prisioneira. O primeiro a chegar à encruza foi Òyèkú (também chamado de Èjì Ologbon). Este, ao tocar o chão da encruzilhada, ouviu e respondeu à pergunta da qual Légbá Ìjèlú havia falado. Após responder à indagação, eis que surge a sua frente um ser trajando vestes negras, que se denominou por ‘Awo’[5]. Através dele, Òyèkú tomou ciência do que é inacessível à razão, de tudo que possui causa oculta, aquilo que é incompreensível.
O segundo a tocar o chão da encruza foi Èjì Ogbè (também chamado de Èjìonile). Este, após responder à indagação, viu surgir a sua frente um ser trajando vestes brancas, que se denominou por ‘Ìkú’ [6]. Através dele, Èjì Ogbè tomou ciência da cessação da vida material, isto é, de tudo que está sujeito ao término da vida terrena ou que o produz.
O terceiro a tocar o chão da encruza foi Ìwòri (também chamado de Èjìla Sebora). Este, após replicar à pergunta, viu irromper a sua frente um ser vestindo trajes de cor marrom, que se denominou por ‘Àiyé’[7]. Através dele, Ìwòrì tomou ciência de tudo que Olódùmarè criou ou o que as vistas e a inteligência humana podem compreender.
O quarto a tocar o solo da encruza foi Òdì. Este, ao retorquir a inquirição, viu surgir a sua frente um ser vestindo trajes insípidos, que se denominou por ‘Àijánà’[8]. Através dele, Òdì tomou conhecimento de tudo que pode possuir mais de um sentido ou interpretação. A eqüidade e a injustiça – A harmonia e a discordância.
O quinto a encostar o bastão no solo da encruzilhada foi Ìròsùn, que, após responder à indagação, viu surgir diante de si um ser trajando vestes acinzentadas, que se denominou por ‘Ìkosílè’[9]. Através dele, Ìròsùn conheceu o desamparo, o desprezo, a desistência, a negligência, enfim, a falta de interesse pelo próprio semelhante.
O sexto a tocar o solo da encruza com o bastão foi Òwónrín. Este, ao responder à pergunta formulada, viu surgir diante de si um ser trajando roupas com cores indefinidas, que se denominou ‘Ògbà’[10]. Através dele, Òwónrín conheceu a justa medida, o estado de prudência, a frugalidade nos sentimentos, na apetência, bem como a naturalidade para obtenção de riquezas materiais, mulheres e filhos.
O sétimo a encostar o bastão na encruzilhada foi Òbàrà, que, ao responder à indagação, viu-se diante de um ser trajando vestes riquíssimas, que se intitulou ‘Ìsoro’[11]. Através dele, Òbàrà conheceu a injustiça, o despotismo, a opressão, o abuso do poder, governantes injustos e cruéis, enfim, o desejo, a loucura desenfreada de hegemonia dos seres humanos uns sobre os outros.
O oitavo a tocar o solo da encruza foi Òkànràn. Este, ao responder à pergunta, viu-se diante de um ser trajando vestes com cores neutras, que se intitulou ‘Ìfohùn’[12]. Com ele, Òkànràn aprendeu a identificar a faculdade que têm os seres humanos de expressarem os pensamentos através da linguagem, permitindo assim a comunicação. Enfim, o conhecimento da interpretação, do som ou conjunto de sons articulados que possuem significado.
O nono a encostar o bastão no solo da encruzilhada foi Ògúndá (também chamado deEta Ògúndá), que, ao fazê-lo, ouviu a mesma indagação feita aos demais conselheiros. Este, ao retorquir a pergunta, viu surgir a sua frente um ser trajando vestes em tom avermelhado, que se intitulou ‘Ìsodisí’[13]. Com o mesmo, Ògúndá tomou ciência das ações contrárias, da oposição, da rivalidade, enfim, da guerra. O fruto da incompatibilidade associado ao desejo da hegemonia.
O décimo a tocar o solo da encruza com o bastão foi Òsá. Este, ao responder à indagação que lhe foi feita, viu surgir a sua frente um ser vestindo trajes castanhos, que se denominou por ‘Aiyélujara Ìronú’[14]. Através deste ser, Òsá penetrou na sede das sensibilidades, morada das aspirações ou lembranças, que, em forma oculta ou reprimida, exerce preponderante influência na personalidade humana. Este local Òsá chamou de ‘Orí Mùdùnmúdùn’ (O Cérebro).
O décimo primeiro a tocar o chão da encruzilhada foi Ìká. Este, ao responder à indagação, que lhe foi feita, viu surgir a sua frente um ser com trajes de diversas matizes que se intitulou por ‘Sísojí’[15]. Através dele, Ìká conheceu a renovação, o complexo que envolve todo o mistério do ressuscitamento – O Mistério da Vida e da Morte e vice versa.
O décimo segundo a tocar o solo da encruza foi Òtùrúkpòn (também chamado de Èjì Oko), que, ao responder à indagação, viu surgir do interior de uma imensa cabaça um ser alado totalmente despido que se denominou ‘Ìyá Onílè’[16]. Através dela, Òtùrúkpòn tomou conhecimento do enigma da formação do planeta Terra. Também lhe foi confidenciado todo o mistério do tempo ponderável entre a concepção e o parto: a gestação.
O décimo terceiro a tocar o chão da encruzilha com o bastão foi Òtúrá (também chamada de Aláàfia), que, ao responder à pergunta, que lhe foi feita, viu surgir diante de si um ser trajando vestes prateadas, que se intitulou ‘Òjíse Eléti-Gbáròyé’[17]. Por meio dele, Òtúrà adquiriu conhecimentos, tomou ciência do poder de ascensão e de ruína que emana da força sobrenatural que é a fala humana.
O décimo quarto a tocar com o bastão o solo da encruza foi Ìretè (também chamado de Obeogúndá), que, ao responder à indagação, que lhe foi feita, viu surgir diante de si um ser trajando vestes na cor violeta, que se denominou ‘Àidá-Ara’[18]. Através desse ser, Ìretè tomou ciência dos mistérios que originam as moléstias que alarmam e contaminam a humanidade. Elucidou-lhe também sobre o ‘Ofò’ (Poder sobrenatural que atenua repentinamente a dor). Revelou-lhe ainda todo o enigma das ervas, seus poderes de cura e de morte.
O décimo quinto a tocar o chão da encruzilhada foi Òsé. Este, ao tocar o solo da encruza com o Ìrófá, viu surgir a sua frete um ser trajando vestes em tons amarelos, que se intitulou ‘Ìpehinda’[19]. Com ele, Òsé tomou conhecimento de todo o mistério e processo da recusa dos erros passados e da transição para uma nova vida. Foi-lhe elucidado, também, o enigma da decomposição da matéria, o retorno, o cumprimento na íntegra do pacto feito entre Olódùmarè e o Ìrúnmólè Ìkú[20].
O último a tocar o solo da encruza com o bastão foi Òfún (também chamado deÒrãngún). Assim que tocou o solo da encruzilhada com o bastão, viu surgir a sua frente um ser seminu, tendo apenas um manto de linho cru sobre suas partes íntimas, que se denominou por ‘Mànàmáná’[21]. Ao ouvi-lo, Òfún voltou seus olhos para o local de onde vinha a voz. Entretanto, ao contemplá-lo foi acometido por uma cegueira momentânea e, não resistindo ao seu resplendor, prostrou-se ao solo diante do mesmo exclamando: ‘Késãfúlà!’[22]. Ainda prostrado no solo, Òfún ouviu a criatura perguntar-lhe pela segunda vez: ‘O que você e seus irmãos procuram?’ Òfún cabisbaixo respondeu-lhe novamente: ‘Olódùmarè, o Criador Excelso, encarregou-nos de localizar e libertar uma jovem donzela que atende pelo nome de Àiyapa.’ Após ouvir a mesma resposta pela segunda vez, Mànàmáná reportou-se a Òfún: ‘Aqui está a jovem que você e seus irmãos tanto procuram. Ela é a delicada flor que se defende antes do ataque, é a conformidade com a razão; com o dever; com a justiça; a integridade de caráter; a legalidade; a imparcialidade; a franqueza, enfim, a boa-fé e o bem-querer. Leve-a, entregue-a ao Criador, porque somente através dele e da palavra dele é que tais sentimentos poderão vir a fazer morada no âmago dos seres que por ele serão criados. Vão em paz! Não a percam em hipótese alguma.’”
Òyèkú’gbè, através das narrativas acima, dá-nos ciência e nos ensina a distinguir os principais sentimentos que podem elevar ou depreciar os seres humanos.
Bibliografia: PENNA, Antonio dos Santos – Páginas 30, 31, 32, 33 e 34 do livro “Èjì Ologbon Àwon Àmúlù” – “Òyékú e Suas Combinações” – Produção Independente – Ano 2006 – ISBN 85-902226-3-2
[1] Mito semelhante, Awofá Obebara. “O Jogo de Búzios por Odu – Um breve ensaio sobre o sistema oracular Merindilogun” . p.118 – RJ : Produção Independente, 1993.
[2] Retidão – O fato de não desviar-se do caminho reto – A integridade de caráter – A imparcialidade.
[3] Crosta que resulta da mortificação de tecidos por gangrena ou pela ação de um cautério.
[4] Chifre de cervo com o qual se bate no Tabuleiro de Ifá. Possui a finalidade de evocar a presença dos Odù’s no momento das cerimônias ou consultas ao Oráculo Sagrado deÒrúnmìlà. Raramente é feito em formato de bastão.
[5] “O Mistério”.
[6] “A Morte”.
[7] “O Universo – O Mundo”.
[8] “A Ambigüidade”.
[9] “O Abandono”.
[10] “O Equilíbrio”.
[11] “A Prepotência e/ou Arbitrariedade”.
[12] “A voz”.
[13] “O Antagonismo”.
[14] “A Liberdade de Pensamento”.
[15] “O Renascimento”.
[16] “ Mãe Dona da Terra”.
[17] “O Mensageiro das Súplicas”.
[18] “A Enfermidade”.
[19] “O Retorno”.
[20] Penna, Antonio dos Santos. “Èjì Ogbè Àwon Àmúlù – Èjìonile e Suas Combinações” , p. 34 – RJ : Produção Independente, 2003.
[21] “O Resplendor”.
[22] “Exclamar com deslumbramento”. É uma das saudações usadas pelos nagôs ìgbómìna para saudar o Criador Olódùmarè.
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OBÍ – A HÓSTIA DO CANDOMBLÈ